Acho que tinha uns onze anos quando meu pai saiu de casa. Eu estava deitada na cama naquele meio estado entre acordada e dormindo em que nos encontramos todos os dias ao amanhecer. Ouvi algumas vozes ao fundo e elas se elevavam gradativamente, assim como o medo dentro de mim. A voz mais grave jorrava xingamentos odiosos enquanto a mais aguda desferia acusações magoadas como socos que pesavam duas toneladas. Isso já havia se tornado rotina, mas até aquela manhã nenhum dos dois havia pronunciado a palavra “ir”.
Eu e meu pai costumávamos ir a muitos lugares. Ir à feira todas as manhãs, por exemplo. Eu amava sentir as mãos geladinhas dele segurando as minhas tão pequenas, amava a brisa da manhã e amava como o sorriso dele se iluminava toda vez que me olhava. Foi com ele que aprendi a ler e a andar de bicicleta, aprendi também a gostar de rock clássico e Dragon Ball Z. Eu costumava deitar em seu peito e pedir para ouvir histórias, e quando eu estava doente, ele era quem cuidava de mim. Eu costumava dizer que ele era o homem da minha vida e que não queria me separar nunca. Ele tinha aquela sensação de quentinho que dá ao sentir o amor e a proteção de alguém te invadindo o peito. Para mim “ir” era sinônimo de diversão, até aquele dia.
Eu fechei os olhos e pensei que se ignorasse a situação talvez ela desaparecesse, que nem meu medo do escuro. Mas não desapareceu. As vozes se exasperavam em cada canto da casa e eu as ouvia se aproximando cada vez mais. Ouvi a porta do guarda-roupas se abrir e mais meia dúzia de xingamentos e questionamentos. Eu já chorava baixinho quando ouvi o último e derradeiro som daquele dia: o da porta batendo.
Eu não ousei abrir os olhos. Sempre fui covarde demais, eu sei, mas eu ainda achava que tudo aquilo poderia ser um pesadelo, um daqueles bem realistas que nos deixam sem ar e depois que acordamos respiramos de alívio. Não foi. Senti minha mãe deitando ao meu lado e me abraçando. As lágrimas dela eram quentes e caiam no meu pescoço.
Depois daquele dia a casa ficou em silêncio por muito tempo.
A vida não parou, a moça da esquina continuou vendendo batata frita, eu ainda tinha escola e a matéria era equação do primeiro grau, os números estavam lá e estranhamente começaram a me confortar. Eu continuava respirando, com um pesar enorme, mas continuava. Todos seguiam suas vidas, e eu… eu só tentava fazer o mesmo, porém quando colocava os pés dentro de casa eu podia sentir que o mundo parava e se estagnava ali. Cortinas fechadas, ar abafado, escuridão total e um silêncio aterrorizante, a casa parecia um planeta inóspito, perdido em algum lugar escuro do universo, e seu núcleo era o coração partido de minha mãe. Às vezes eu podia jurar que ouvia o som de suas lágrimas caindo no chão do quarto. Como podia um outro ser humano partir o coração de um igual assim? Como podia a dor emocional ser tão física a ponto de fazer arder o corpo todo e nos adoecer? Acho que ali eu estava aprendendo sobre partidas e que a vida dói em todos nós.
Meu pai sumiu por meses e por meses eu fui o único mundo da minha mãe. Eu nunca soube como cuidar muito bem de ninguém, mas meu amor era tão grande que transbordava em carinhos em seu rosto cansado e em cada “mamãe, para de chorar, por favor, eu tô aqui”. Ela chorava mais, eu também. Ela chorou por meses e isso me levou a estudar biologia, sentada no pé de sua cama, só para descobrir como ela podia colocar tanta água para fora se não era um rio. Indagações dos onze anos, amigos.
Ela comia minhas comidas ruins e congelados, tomava banho duas vezes na semana e chorava o resto do tempo. Eu estudava pela manhã e passava o resto do dia com ela e o silêncio. Ninguém falava, ali só se sentia. Eu estava aprendendo sobre divisão no colégio, então peguei a dor dela para abrigar no meu peito também, pensava que assim, dividindo, talvez passasse mais rápido. Meu pai me ensinou a ler, ali com ela eu reaprendi. Eu lia suas expressões e ela não precisava mais fazer esforço algum para me explicar suas dores e anseios, eu sabia, aprendi a ler olhares. Minha mãe padecia em tristezas e por e-mails e cartas eu ficava sabendo da vida regada a mulheres e bebida do meu pai. Ali aprendi a sentir raiva.
Eu senti raiva por ele tê-la tocado com mãos tão sujas e ter feito pouco de toda a luta precisa dela para salvá-lo. Ali aprendi que nem todos podem ser salvos.
Senti raiva por ele ter esquecido a mim, senti raiva por ainda chorar todas as noites pela falta, senti raiva por ter que aguentar tudo nos ombros enquanto ele se divertia depois de ter quebrado corações de famílias inteiras, senti raiva quando o dinheiro acabou e eu não sabia o que fazer para alimentar uma casa aos doze anos, senti raiva quando soube que ele tinha outros filhos e estava presente na vida deles enquanto eu me fodia, senti raiva quando soube, tempos depois, que ele estava destruindo esses filhos como também destruiu a todos nós, senti raiva ao passar meus aniversários chorando todas as minhas dores e esperando por uma ligação que nunca veio, senti raiva por ter que carregar todos nas costas quando fui deixada sozinha e não sabia como me defender, senti raiva por ter que sentir dor só para proteger a todos. E QUEM PROTEGIA A CRIANÇA QUE NÃO SABIA AINDA A DIFERENÇA ENTRE TOQUES DE AFETO E AQUELES QUE TE RASGAM A ALMA? as pessoas são cruéis.
Eu vivi de raiva durante anos até descobrir que, às vezes, algumas pessoas não sabem amar. Elas estão destruídas e frias demais para um sentimento tão nobre. Meu pai era uma dessas pessoas e eu fui me tornando igual conforme os anos passavam, mesmo sem perceber.
Depressão é realmente assustadora, tanto quanto a vida; minha mãe afundava, eu me via tentando confrontá-la com cartinhas de amor feitas à mão e pintadas com giz de cera. Eu juro que, apesar da raiva, eu tinha tanto amor que achava que poderia curar o mundo de todas as dores se desse um pouquinho a cada pessoa que era importante para mim.
Em que momento exatamente deixamos de amar como crianças e passamos a ser frios? Em que momento nos tornamos monstros que destroem corações? Eu me perguntava se um dia seria como meu pai, e agora, olhando para mim mesma 10 anos depois, acho que fui, ou talvez ainda seja. A vida aconteceu. Nossos traumas vão se cruzando com os de outras pessoas e juntos se transformam em monstros enormes que, ao final de cada relacionamento falido onde, tentam habitar em nós, bem naquele espaço entre a dor e o vazio que a outra pessoa deixa. Se deixarmos, corremos o risco de machucar um amor vindouro, mas em troca esses monstros tão assustadores massageiam nosso orgulho, se alimentam dos nossos medos e nos dão uma falsa sensação de proteção.
Nossos monstros nos olham nos olhos e dizem que o amor é moda do século passado e que não temos mais que nos aprofundar em ninguém, talvez assim não precisemos reviver velhos traumas de infância ou de relacionamentos. Me livrar deles está sendo a coisa mais difícil que já fiz. Eles têm garras fincadas no centro do meu coração, e mesmo sabendo que isso me faz muito mal, tentar removê-las me causou um sangramento profuso. Eu não quero machucar pessoas, não quero mais despertar sentimentos tão ruins nelas, não quero ser responsável pela morte interna de ninguém, mesmo que digam por aí que machucar também é necessário pois faz crescer. Não quero ser meu pai. É certo que não somos apenas acertos e que a história de cada um se constrói na capacidade de aprender com as falhas, mas espero que não precisemos falhar tantas vezes para sermos bons. Pelo menos é com isso que eu conto. Eu quero amar a vida, eu quero amar as pessoas, mesmo que isso signifique sangrar até a morte da minha criança machucada que teme a vida e o amor. Por favor, eu quero amar.
E eu não quero ser meu pai.